Crônica: “Domingo”

Ela se aproximou da mesa e, durante alguns segundos todo som que ecoou pela sala foi o dos tacos rígidos de seus saltos vermelhos. Logo, o burburinho da fila retomou o fôlego, permitindo que alguns homens tecessem os comentários a respeito daquele corpo esguio que se delineava sob um leve vestido Animale. Justiça seja feita, o calor era insuportável e o perfume fresco.
A moça seguiu o ritual confiante, entregou o documento com a mão firme, fechando a bolsa, para logo em seguida tornar a abrir. Mas nenhum detalhe abalava sua confiança.
Aproximou-se da urna com um sorriso discreto e, sem tirar os óculos Christian Dior digitou rapidamente os números dos deputados federal, estadual, senadores, governador… O botão verde era acionado com rapidez, o mesário pensou consigo “deve ser bancária”, um dos rapazes da fila sorriu satisfeito um “finalmente alguém que sabe usar essa merda de urna”, a senhora suada resmungou “ninguém presta mesmo, vou anular” e os dois homens esperavam ansiosamente pela oportunidade de elogiar de alguma maneira a princesa que sabia votar.
A tela da urna pedia dois dígitos e a moça sentiu que a mão tremia. Ajeitou os óculos, respirou fundo e foi assim mesmo com o indicador vacilante em direção ao número um. Suas pernas tremiam. Respirou demoradamente e resolveu tirar os óculos. É preciso ver a foto do mito com nitidez. Lembrou da filha, da mãe, da avó que teve um AVC há menos de um mês, da conta do colégio que vai vencer dia 10, mas hoje já é dia 7, a vida passa num piscar de olhos, e ela piscou, tornou a piscar, apertou os olhos e digitou o sete, surpresa por notar que todo seu corpo tremia, suas mãos estavam molhadas, “seria sangue? Que droga, onde foi que lasquei a unha?”
Olhou o rosto do candidato e refletiu sobre a ética. Ficha limpa. Deve ser. O Brasil precisa disso. Vamos disciplinar os jovens. Bandido bom é bandido morto, ou preso, bem preso, tem que acabar com essa putaria toda. “Menina, olha a boca. Cadê seu vocabulário? E se sua filha te ouve falar assim?” Olhou mais uma vez para o candidato e sua mão retomou certo vigor. Nos piores momentos é que revelamos quem somos lá dentro. Esse homem vai ter poder. Minha filha escutou ele dizer algo como “você não merece nem ser estuprada…”
“Mamãe, o que significa estuprada”?
Engoliu seco de novo. Aquela vez, na frente da filha. Dessa vez, na frente da urna. Atrás do biombo. Ainda bem.
Será que o ódio pode se multiplicar? Não, ele não terá poder para isso. Temos que parar o PT a qualquer custo. Aquela vadia defendia bandidos… O que você queria que ele fizesse? Citasse Platão? Sim, Platão! “Muitos odeiam a tirania apenas para que possam estabelecer a sua.“ – lembrou-se de um aforismo que lera na apostila da filha.
Esse filho da puta deveria ter respondido com mais sabedoria. Nessa e em outras várias situações.
Pensou em si mesma. Arriscou uma olhadela pelo biombo e um rapaz que se coçava a fitou com lascívia. Pensou em si.
Inevitável, ocorreu que algum monstro pudesse tocar sua criança.
Onde estará nossa segurança?
Daremos armas a todos, mas quem dará a moral?
Faremos tratados com quem?
Quero mesmo me defender de alguns imbecis com armas, sendo que posso educar as próximas gerações para que haja menos imbecis?
Lembrou que em casa, a filha sorria. Estava segura.
Alguém na fila vociferava e ela apertou o botão.
CORRIGE.
A foto desapareceu.
Ela colocou os óculos e o melhor sorriso. Sempre há tempo.
Refez o voto e o semblante, apertou o verde com a confiança que a consciência oferece aos justos quando a carga é menor.
A fila seguiu em frente.

Seja Sol

— Mestre, qual o segredo para uma vida plena?
— Simples. Seja como o sol.
— Mas mestre, não é tão simples assim. Como iluminar o mundo tão obscurecido pelos vícios? Como aquecer os corações de todas as formas vivas? Como desenvolver tamanha sabedoria e tão notáveis poderes?
— Tolo! De onde tirou tais ideias?
— Mestre, com todo respeito, o senhor acabou de exortar-me a ser como o astro rei!
— Pois então obedeça! Seja como ele! Seja como o sol!
— Oh mestre, colocai em termos mais práticos para esse humilde aprendiz!
— Prestenção: Quer uma vida plena? Seja como o sol. Levante cedo e faça o seu serviço.

eBook “Brasil. Historias en pedazos”

Já está disponível para download gratuito o eBook “Brasil. Historias en pedazos” editado por Ediciones Ambulantes.
A obra recolhe os contos vencedores e finalistas do I Concurso de relato breve “cuéntame un cuento”, promovido pelo Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca, cujo resultado foi publicado no passado mês de maio no Palácio de Maldonado.
Dentre os contos publicados, encontra-se “o mandado de prisão”, de minha autoria!

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Boa leitura!

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Nota do autor

Não sei exatamente como foi que a história do equilibrista e da garotinha Angelina veio parar na minha cabeça, mas lembro que foi em uma manhã morna de outubro e que acordei com a voz de uma criança gritando:

– Cuidado! O senhor vai acabar caindo!

Deve ter sido um sonho, pensei. Virei-me de lado e constatei que Nina ainda dormia pesado, a luz fraca do abajur revelava o berço onde Joana repousava tranquila, às vésperas de completar seu décimo mês de vida. Fechei os olhos na tentativa de recuperar o sono e, quem sabe, também o sonho que naquele instante vinha em lampejos desconexos em minha cabeça.

Sob um viaduto alto, um fluxo rápido de automóveis produzia um intenso ruído que me fazia revirar na cama. Eu estava na beirada, pronto para me jogar. Olhei ao redor mais uma vez, não havia nenhum carro ou pedestre circulando sobre o pontilhão. Mas por que eu me lançaria para tal destino? Havia uma forte angústia, uma falta de ar, uma tontura.

– Cuidado! – a mesma voz chamou minha atenção, e acordei do primeiro sonho.

Angelina era uma negrinha de sete anos de idade que adorava Milk-shake de morango e cantigas de roda. Mas como eu sabia dessas coisas? De repente me dei conta de que estava sonhando, o que é muito perigoso, pois quando se toma a consciência de que tudo não passa de um sonho, a linha tênue que separa os dois universos está prestes a ser rompida de supetão. Por outro lado, é como se ganhássemos superpoderes, pois descobrimos que as leis da física não são tão importantes assim.

Foi assim que eu segurei na mão daquela garotinha e me lancei em uma jornada sem volta, anotando todas as pequenas aventuras e descobertas em um pequeno caderno branco, ou cor-de-rosa, não me lembro. A verdade é que quando acordamos, os detalhes vão se desvanecendo em degradê, na velocidade do nascer do sol. Por isso, lembro-me de ter levantado antes da alvorada e de sair do quarto na ponta dos pés, a fim de preservar o sonho mágico de Joana e começar a escrever a história de Antônio e Angelina, antes que o sol clareasse minha mente a ponto de me despertar do mundo real.

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A culpa é das estrelas?

Em um ponto, sou meio Gil: “Até que nem tanto esotérico assim…”
Porém, às vezes sinto que sou um raro, ou não tão raro exemplar da espécie, que reafirma a possibilidade dos astros interferirem cá em nossa vida.
A corda quebra no meio do palco e não tem uma de reserva, tiro de letra.
Tendinite, ou essa dor do joelho que apareceu e gostou de ficar.
Pode ser, que seja, tratemos disso tudo.
É uma gastrite, ok. A vida tem dessas coisas, pode ter sido os tequila (afinal, aqui se faz, aqui se paga). Tiro de letra.

Ah, seu mundo virou de ponta cabeça, as pessoas que você sempre amou te enganaram. Tudo bem, superarei.
O problema é que, dentre todas rasteiras que a vida pôde me aplicar, creio que a mais perversa aconteceu em 1983:
Nascer pisciano foi sacanagem.
Quando está feliz, chega a se questionar. Ou comemora demais, o que é sempre um erro.
Às vezes, quando está mal, logo quer meter um chumbo nos miolos. Mas não. Você é de peixes. Magoaria alguns. Faria sujeira. Afinal, quem vai querer recolher seus miolos?

Tiro de letra aqueles problemas elencados acima? Claro. É a vida, como cantou Frank. Mas aqui dentro, nesse mundo que só o pisciano conhece… Ah, eu morro de março a março.
Enfrentaria uma eternidade de altos e baixos se fosse, sei lá, de Sagitário.
Mas, por Deus! Tinha que ser de peixes?
Nem nos Cavaleiros do Zodíaco isso prestou, até pra bater nos outros o cara da última casa usava rosas.
De agora em diante, quando eu ver uma grávida querendo parir alguém entre 20 de Fevereiro e 20 de Março, vou gritar pro neném: “Aguenta mais uns dias aí dentro! Segura a onda, porque Áries é mais legal até em anime japonês!”

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